![]() Como havia prometido, esse é meu ultimo texto abordando o tema do racismo, e Deus permita que escreva outros com outros temas, até que seja necessário abordá-lo novamente.
Afrodescendente
Havia um garoto chamado Guga (eu) que tinha um único irmão MAIS NOVO chamado B..., nós éramos muito pobres financeiramente, nossa mãe tinha pouco conhecimento científico, mas era trabalhadeira e virada, muito cedo meu pai faleceu de AVC deixando uma prole de 05 filhas e 04 filhos, sendo 06 menores de idade. Aos 07 anos de idade eu e B... que tinha 06 anos iniciamos nossos labores fora de casa juntamente com nossa mãe vendendo laranja, cajá, cocada e bolinho de trigo num parque, e numa escola secundarista no período noturno e assim enquanto estudávamos pela manhã, à tarde e a noite estávamos ocupados.
Com o passar dos anos fomos mudando de séries, e a Mami também procurou outro lugar para fazer vendas e assim fomos parar no Hospital Universitário Presidente Dutra, enquanto minha mãe no período noturno vendia na entrada do hospital, nós dois vendíamos bombons e chicletes em tabuleiros pendurados ao pescoço lá na Praça Gonçalves dias ali próximo ao hospital, como o dinheiro só dava para o alimento e morávamos no bairro do Monte Castelo e estudávamos no Centro da cidade há mais ou menos uns 15km de casa, e como já tinham mais de 07 anos deveriamos pagar passagem, porém não tínhamos dinheiro e assim íamos caminhando num sol escaldante (agora já no período da tarde) até a escola, às vezes por duas vezes ao dia quando havia educação física. Como tínhamos idade mas não tamanho, e eram negros, chamavam-nos de Faísca e Fumaça (dois urubus do desenho), embora não atendendo pelo apelido, mas ambos não nos importávamos porque desde sempre a vida era assim mesmo. Um dia eu tive uma ideia, cheguei cansado da educação física e resolvi ir para escola à tarde de ônibus, e assim planejei, ao entrar por trás, quando ônibus abrir a porta na parada nós dois deveríamos descer pela mesma porta correndo e assim não pagaríamos a passagem que não tínhamos. Ambos fomos para escola e ao chegar à parada B... que era o mais novo desceu correndo, e Eu quando desci o motorista conseguiu fechar a porta de trás prendendo meu pé direito, e com o pé ali imprensado e o corpo fora do ônibus o motorista me arrastou por alguns longos metros, depois abriu a porta e se foi sorrindo. Eu me contorcia de dor no pé que parte da pele fora arrancada, dali fui para escola claudicando e entendi que aquele método não era correto e assim não repeti mais. Mesmo sendo muito unidos, Eu não imaginava a diferença que nossas vidas tomariam depois de alguns anos. Nos dias de domingo e feriados era muito especial porque como nossa mãe vendia na calçada à entrada do HUPD, e ficava também bem em frente a um Quartel do Exército, lá depois do almoço dos militares, formávamos fila com a bacia na mão para receber a sobra e era um momento delicioso, eu comia que me fartava, ah que comida deliciosa eu dizia como deve ser bom ser militar, eles são tão bons, nos tratam tão bem mais que as outras pessoas e ainda nos alimentam. Quando não havia sobra, lembro que eu sentia o cheiro da comida do hospital, e às vezes entrava sorrateiramente e ficava olhando pela fresta da janela os funcionários comendo no refeitório, e assim pensava, “um dia ainda vou comer essa comida, ela é tão cheirosa” (a fome dói...). Bom, passando para a fase adulta, meu irmão afastou-se de mim e foi viver uma vida muito diferente da minha, fez amizades erradas e enveredou por caminhos mortais. Porém eu, inconscientemente fui escrevendo minha história trabalhando e estudando, fui vendedor de picolé, laranja, filtro de água, trabalhei como menor estagiário no Banco Itaú, Colone e Supermercado, assim mesmo fiz vários cursos citados em minha prosa poética que repito alguns: Técnico em Administração, Laboratório, Música, Enfermagem, Fisioterapia Bacharelado, Pós grad. em Saúde da Família, etc... Na função de Fisioterapeuta em um hospital e me fora dada uma paciente que havia passado 90 dias na UTI, todos os dias parecia que ela iria falecer, mas perseverou até me ser entregue na Clínica Médica, quando a recebi ela estava traqueostomizada, em macronebulização, anasarca (edema generalizado), escaras (trocantéricas e sacro-coccigeas), pouquíssima motilidade. Então iniciei meu trabalho de fisioterapia respiratória e motora, e dentro de um curto tempo já a pus de pé pela primeira vez após vários meses, e livre da macronebulização. Em menos de 48h um médico pneumologista chegou com um grupo de acadêmicos de medicina que logo fizeram um círculo em torno da paciente e ele se dirigiu à filha da paciente e perguntou: “Quem é o fisioterapeuta dela?” a moça alegremente disse: “Bem na hora! está aqui, Dr. Agostinho”! e virou-se para mim que estava bem ao lado dela. Bom! Eu estava de jaleco, luvas, máscara, um grande estetoscópio azul no ombro e uma inscrição bem visível no jaleco (Dr. Agostinho Pimenta – Fisioterapeuta), o médico olhou para mim por alguns segundos e houve silêncio no ambiente, olhou para o meu sapato e subiu até meu rosto, sem me dizer nenhuma palavra, ignorando totalmente minha presença, virou-se para a paciente e disse: Dona L... vou tirar essa cânula de sua traqueostomia agora, pois não se faz mais necessária”. Pegou o material e retirou. Os alunos se entreolharam e não entenderam o que havia acontecido, mas eu sei, sei muito bem o aconteceu naquele ambiente, naquele momento... É protocolo daquele hospital a equipe multidisciplinar conversar, trocar informações e opiniões antes de procedimentos novos, especialmente naquele caso onde o fisioterapeuta é o maior responsável pela evolução dos quadros respiratório e motor, o médico não faz um procedimento desse sem antes consultar o fisioterapeuta. (O restante deixa pra lá para obtermos um final feliz). Uma determinada noite em outra função, já na enfermagem, entrei em uma enfermaria, e as pessoas costumam ficar me olhando parece que hipnotizadas, ainda não sei o motivo real, mas, nesse dia ao entrar perguntei ao primeiro paciente se ele estava “bem”, se estava com dor ou algum mal-estar naquele momento, então ele olhou para mim e calmamente perguntou: “O Sr. é o médico?”. Naquela enfermaria havia um bom homem o qual eu já havia tratado seu filho politraumatizado (vítima de acidente de moto), e quando ele me viu e ouviu a pergunta, disparou de lá tentando me elogiar e respondeu em meu lugar: “Ele é doutor! É só a cor dele que é assim, mas ele é inteligente...”. Caraca meu e agora? dentro de mim sorri de tamanha inocência acompanhada de ignorância e tradição. Bom, antes mesmo que eu dissesse algo, o paciente que me perguntou virou-se para ele e disse: “Qual o problema da cor dele? Não entendi o que você quis dizer! Então eu me retirei sorrindo internamente e os deixei enquanto o primeiro ensinava lições de vida ao segundo. Contando esses pequenos relatos da minha caminhada, quero deixar claro aos leitores, que da comida dos militares que tanto saciou minha fome e eu desejei ser um deles, hoje sou 1º sargento (a patente mais alta entre os praças não especiais), e da comida do hospital que gostaria de experimentar, faço parte de uma equipe multidisciplinar, sou funcionário federal concursado naquele HU. Fica claro que o racismo existe, destrói, afasta, dificulta ao máximo que pode a ascensão de suas vítimas, esmaga a autoestima, mata, e tem prazer em tudo isso, mas, também afirmo que tudo isso para o forte e sábio são degraus, degraus altos, porém transponíveis, é dose amarga de tônico que nos faz firmes e experimentados nas intemperes da vida, somos atacados diariamente, mas em tudo isso, somos mais que vencedores. Se você quiser vencer, tens que ter um sonho e disciplina, pois sonho sem disciplina é devaneio e disciplina sem sonho, é escravidão... Parafraseando Gonçalves Dias. “A vida é combate que aos fracos abate, porém, aos bravos e fortes só pode exaltar”. gugapimenta
Enviado por gugapimenta em 30/07/2015
Alterado em 05/07/2016 Copyright © 2015. Todos os direitos reservados. Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor. Comentários
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